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quinta-feira, 3 de abril de 2014

O Silêncio

É ruidoso o mundo em que vivemos. Há demasiadas máquinas de fazer barulho: telefone, fax, rádio, TV, veículos, campainhas. Nosso cérebro habitua-se tanto à sonoridade excessiva que custamos a desligá-lo. Uns preferem remédios que façam dormir. Outros, a bebida.

Assusta-nos a hipótese de manter a casa em silêncio. Decretar o jejum de ruídos; desligar rádio, TV e telefone. Isso pode levar ao pânico. A “louca da casa”, a imaginação, entra em rebuliço, supondo que há uma notícia importante a ser ouvida ou um telefonema de urgência a ser recebido. Ou experimenta-se o medo de si mesmo. Sentir-se ameaçado por si mesmo é uma forma de loucura frequente em quem, súbito, vê-se privado de sons exteriores. Como alguém preso no elevador. Não é a claustrofobia que amedronta. É o peso de suportar-se a si mesmo, entregue aos próprios ruídos interiores.

No antigo mundo rural, o silêncio era companheiro. Não havia meios de comunicação e as distâncias, cobertas a pé, a cavalo ou de charrete, faziam do viajante solitário cúmplice do silêncio emanado da paisagem. A fé evocava a presença invisível de Deus, santos ou fantasmas.

O silêncio é a medida do amor. Só quem se ama sabe curtir o silêncio a dois. O silêncio queima quando há muito o que falar atravessado na garganta. Se a presença do outro incomoda, o silêncio pesa toneladas. E, na falta de diálogo, corre-se o risco de explosão. É qual uma represa prestes a romper o dique e afogar quem se encontra pela frente. De repente, a emoção reprimida arrebenta e, em volta, chovem, em estilhaços, o respeito, a cortesia, a honra própria e a alheia. As palavras multiplicam-se, sôfregas, na tentativa de aliviar a tensão.

Os monges nutrem-se de silêncio. O monge vem de monachós, solitário. Nos mosteiros e conventos aprendemos a gostar da solidão, ouvir a voz interior, estar só para sentir-nos intimamente acompanhados, tapar os ouvidos para escutar e auscultar Aquele que faz em nós Sua morada. Enfim, fechar os olhos para ver melhor.

Os índios tribalizados sabem fazer silêncio. Como os monges, valorizam as palavras. Assim são também os orientais, comedidos em suas expressões. Já os ocidentais são parladores, falam muito e dizem pouco.

No Evangelho, Jesus recomenda não multiplicarmos as palavras na oração. O Pai sabe de que necessitamos. Todavia, somos desatentos ao conselho. No Ocidente, falamos de Deus, a Deus, sobre Deus. Quase nunca deixamos Deus falar em nós. Agimos como aquela tia que liga para minha mãe: fala tanto, que nem se dá conta de que mamãe larga o fone, vai à cozinha mexer a panela e retorna.

O silêncio constrange quem não sabe acolhê-lo. Imagine uma refeição na qual, de repente, todos se calam em torno da mesa. No entanto, outrora os monges comiam calados. A única voz era a do leitor, que cuidava de nos alimentar o espírito enquanto nutríamos o corpo.

A meditação é a escola do silêncio. Como a nossa cultura é avessa a essa prática, tememos fazer calar as vozes exteriores e interiores. Quem medita sabe mergulhar no silêncio e enxergar o que não se pode ver à superfície.

Há pessoas tão densas de silêncio que, sem nada dizer, bradam alto. O silêncio do sábio é eloquente, como o do santo é desafiador. Ao se calarem, excluem-se da competição verborrágica. Por isso, sobrepõem-se aos demais. Guardam para si as pérolas que os outros atiram aos porcos.

Quem muito se explica, muito se complica, pois teme a própria singularidade.

É terrível o espectro de uma parcela dessa geração que se nutre de ruídos desconexos. Comunica-se por um código ilógico; balbucia letras musicais sem sentido; entope de sons os ouvidos, na ânsia de preencher o vazio do coração. São seres transcendentes, porém cegos. Trafegam por veredas perdidas, sem consciência de que procuram fora o que só pode ser encontrado dentro.

O silêncio não é quebrado apenas pelos ruídos, mas também por símbolos, logotipos, outdoors, linhas arquitetônicas de mau gosto. A poluição visual desgasta o espírito. A cidade encobre sua beleza com a propaganda que sujeita o olhar à solicitação incessante.

Quem cala, consente? O sábio, “com sente”. Capta melhor o drama ou a alegria alheia. Compaixão. Qual um radar, não emite sons e, no entanto, apreende o que se passa em volta.

O índex do totalitarismo do consenso neoliberal decreta, hoje, o silêncio dos conceitos altruístas. Grita-se competitividade, concorrência, “performance”, disputa, privatização… Cala-se solidariedade, cooperação, doação, partilha, socialização. Edifica-se a barbárie em nome de uma civilização prometeica, na qual muitos são os excluídos e poucos os escolhidos.

Saber calar, saber falar; é alcançar a sabedoria. Só quem conhece a beleza do silêncio, dentro e fora de si, é capaz de viajar por seu próprio mundo interior pacote impossível de ser encontrado em agências de turismo. Trata-se de uma exclusividade das tradições religiosas milenares.

Frei Betto

fonte: http://www.msc.com.br/santuariodasalmas

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